
Hoje, o digital deixou de ser uma incógnita futurista. A velocidade da transição pode ser mais célere ou mais tímida, dependendo de onde viveres, mas a era analógica já fez as malas e não há bilhete de volta.
Imaginemos uma rotina simples em casa antes de ir dormir: assistimos a um filme numa smart TV, encomendamos um snack com um par de cliques e, quando vamos dormir, um anel monitoriza o nosso sono, frequência cardíaca, pressão arterial, níveis de oxigénio no sangue e uma dezena de outras coisas. Há apenas 20 anos, fazer tudo isso significava sair de casa, ir ao cinema, ir a um restaurante e visitar um médico para realizar diversos exames para tudo aquilo.
Tudo nos parece fácil e isento de esforço. No entanto, por detrás dos ecrãs, uma vasta infraestrutura opera continuamente: servidores processam volumes imensos de dados, sistemas de comunicação transmitem informações ao longo de continentes e algoritmos executam milhões de cálculos por segundo. Todos estes processos consomem uma quantidade substancial de energia, requerem materiais como metais de terras raras e dependem de sistemas de refrigeração que drenam enormes quantidades de água. Embora menos visível do que um tubo de escape ou uma chaminé industrial, o impacto ambiental do digital é real, mensurável e global, contribuindo para cerca de 3% das emissões globais de CO2 – mais do que todo o setor da aviação.
Este é o paradoxo da nossa época. O digital é verdadeiramente transformador, oferecendo-nos ferramentas sem precedentes para enfrentar uma ampla gama de desafios: permite-nos acompanhar emissões de carbono quase em tempo real, prever padrões de seca e orientar decisões agrícolas, criar sistemas de transporte público mais eficientes ou optimizar o consumo de energia em edifícios. No entanto, a procura contínua por redes mais rápidas, meios de comunicação com maior qualidade e instrumentos intensivos em dados, como a inteligência artificial, significa que a pressão sobre os nossos recursos naturais e sobre o ambiente só continuará a aumentar.
A UE já começou a reconhecer esta faca de dois gumes. O Pacto Ecológico Europeu e as suas políticas subsequentes, como o programa Década Digital 2030, salientam que o progresso tecnológico e a responsabilidade ambiental devem andar de mãos dadas, promovendo uma abordagem mais circular à economia digital. Também o Regulamento de Conceção Ecológica para Produtos Sustentáveis (ESPR), visa garantir que produtos eletrônicos sejam concebidos para serem energeticamente mais eficientes e facilmente reparáveis. Entretanto, o Pacto para Centros de Dados Climaticamente Neutros aborda um dos pontos mais visíveis do metabolismo digital: os centros de dados. Frequentemente vistos como simples armazéns, na realidade, são autênticos comilões de energia. Ao comprometer os operadores com metas concretas de eficiência energética, utilização de energias renováveis e reciclagem de equipamentos, o pacto demonstra que a infraestrutura digital pode, em princípio, alinhar-se com os objetivos climáticos.
Mas a ambição por si só não chega. O panorama regulatório fragmentado da Europa, as diferentes capacidades de aplicação dos Estados-Membros e o caráter voluntário de muitos compromissos levantam dúvidas sobre se estas ambições se irão traduzir em resultados concretos.
A ambição deve ser temperada pela execução, a inovação pela responsabilidade e os objetivos pelo acompanhamento. Um quadro de referência pode traçar o destino, mas é a aplicação consistente e a adaptação desse quadro que determinam se a viagem será realmente sustentável ou apenas simbólica.
Por outras palavras, a promessa de uma era digital limpa e acessível não é garantida, necessita de ser construída, passo a passo, através de escolhas informadas e ponderadas. Para tal, são essenciais mecanismos de monitorização eficazes e incentivos que tornem o caminho sustentável a escolha óbvia, não apenas a mais virtuosa.
No cruzamento entre o progresso tecnológico e a sustentabilidade ambiental, os decisores políticos enfrentam a tarefa de promover modelos de negócio menos dependentes da exploração intensiva de recursos. Isso requer uma visão integrada e de longo prazo, que substitui os tradicionais modelos de governação centralizados e rígidos por estratégias flexíveis, abertas à aprendizagem e à colaboração em todos os níveis, do local ao global.
O objetivo não é travar o avanço tecnológico, mas sim direcioná-lo para resultados que sirvam verdadeiramente a pessoa comum e o planeta.
Filipe Ferreira


